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Entrevista a Jaime de Oliveira Martins

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por Sofia Pereira

Jaime de Oliveira Martins nasceu em 1963, na Marinha Grande. Viveu em Leiria e frequentou o curso de Relações Públicas na LeTourneau University, Texas, EUA. Em 2015, licenciou-se em Relações Humanas e Comunicação Organizacional, na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria. Escritor com um sentido de humor requintado e muito atento à realidade que nos rodeia, incursou no universo literário com a publicação do livro Fontes de Guerra, Fontes de Paz.

A Fábulas entrevistou o autor. Jaime de Oliveira Martins, que desde cedo manifestou um enorme fascínio pela escrita, fala-nos do seu percurso, dos seus gostos e inspirações no mundo das letras.

Em que momento da sua vida surge a paixão pela escrita?

Sempre gostei de escrever. Desde os tempos da escola primária. No entanto, tudo o que escrevia, lia, saboreava e rasgava. Até que a Fátima, a minha mulher, incentivou-me a guardar os meus escritos, sendo que alguns deles estiveram na origem do primeiro livro, Fontes de Guerra Fontes de Paz. A boa aceitação pelos leitores foi o impulso que faltava para continuar, num processo que se entranhou e que resultou em mais dois livros, o Mar Liberal e, o mais recente, Heróis do Ar.

Considera que tem sido dado espaço suficiente à literatura em Portugal?

Tenho que reconhecer que algo tem sido feito nos últimos tempos. Parece-me que há empenho para fazer regressar o gosto pela leitura. No entanto, também me parece que há alguns autores com valor que nunca conseguem verdadeiramente revelar a sua obra e que, por manifesta falta de apoio, permanecerão desconhecidos. Refiro-me a autores portugueses, naturalmente, pois muitas pessoas compram pelo nome… e, nesse sentido, penso que o espaço dado não é ainda suficiente. É importante estimular novos autores, reconhecer os meritórios e fomentar a sua leitura.

Qual foi o livro que mais o marcou em criança? Porquê?

Em criança não era grande leitor. Lia as aventuras dos Cinco e banda desenhada. Mais tarde, fui influenciado por algumas obras de Dale Carnagie, que foram determinantes para a minha forma de interagir com os outros, e pela obra A Pérola de John Steinbeck, que me alertou para a relativização da riqueza. A Vela Branca, de Sergio Bambarén, também foi marcante para mim, pelo simbolismo da viagem à descoberta do mundo, que pode, acima de tudo, ser a auto descoberta.

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Fontes de Guerra, Fontes de Paz recria um período conturbado da nossa história – as Invasões Francesas – e desenrola-se num lugar muito especial para si, nas Fontes, em Leiria. Podemos considerar que esta sua primeira incursão na escrita é uma homenagem aos seus antepassados e ao lugar onde vive há cerca de 10 anos?

Sem dúvida! É intencional a homenagem aos meus antepassados, onde figura um soldado de Napoleão que se apaixonou por uma camponesa e por cá ficou. A minha mãe ainda tinha o apelido francês «Mingot». Por outro lado, há cerca de onze anos que me mudei para as Fontes. É um lugar que eu adoro, considero a «aldeia mais aldeia» do concelho de Leiria. Quis plasmar esta minha paixão por aquele lugar, descrevendo toda a zona e a sua envolvência nas narrativas e também na escolha do título.

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Mar Liberal conta a aventura de dois jovens e grandes amigos de infância, Rufino e Teodoro, que partem à descoberta de novas aventuras. Este livro é um convite aos mais jovens para refletirem sobre a importância dos sonhos que todos temos, lembrando-os que há momentos na vida em que é necessária uma atitude firme e assertiva para conseguir alcançar aquilo que desejamos?

Mar Liberal é isso e muito mais. Considero que não deveremos desistir dos nossos sonhos, mas para os perseguir há que ter consciência da sua exequibilidade, senão deixam de ser sonhos para serem utopias, que nos conduzem a um estado de frustração permanente. No caso dos dois jovens que refere, eles foram atrás de algo, não sabiam muito bem de quê, mas acabaram por encontrar o seu rumo, ainda que esbarrando em dissonâncias. No entanto, a partir do momento em que o objetivo é definido, o foco e a firmeza são determinantes. Foi graças a esse foco, à firmeza e à determinação dos valores que defendiam que os liberais, embora em clara inferioridade numérica e capacidade bélica, venceram as batalhas decisivas para o desenlace da guerra.

Deixou algum sonho de criança e/ou adolescente por realizar? E, hoje, é um sonhador?

Tenho que sorrir para responder a esta questão! Tantos sonhos que ficaram para trás, mas tantos outros que se tornaram realidade. A vida é a gestão destas emoções e a forma como lidamos com elas pode condicionar a nossa atitude. Por exemplo, enquanto adolescente não perdia uma corrida de Fórmula 1 e sonhava um dia ser piloto. Tomei consciência que este era um sonho que não podia concretizar e não me deixei dominar por qualquer frustração. Ciente da minha realidade, agarrei-me a coisas mais simples e tangíveis como praticar mergulho com garrafa, viver intensamente as amizades, ir viver para as Fontes e escrever um livro. Penso que um sonho tangível é saudável e um sonho intangível pode tornar-se numa obsessão patológica. Hoje, continuo a sonhar, claro! E muitos desses sonhos estão patentes, e de alguma forma vividos, em alguns protagonistas ficcionados. Espero um dia pegar numa autocaravana e sair, sem destino e sem tempo, nem que seja através de um dos meus próximos personagens.

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O facto de ter cumprido o Serviço Militar Obrigatório influenciou a escrita de Heróis do Ar?

Não. Cumpri o serviço militar obrigatório, no exército. O facto do serviço militar ser obrigatório na altura, condicionou o meu percurso de vida, pois tive de suspender os meus estudos nos Estados Unidos. Nunca me passou pela cabeça não poder regressar ao meu país sem poder andar de cabeça erguida. O Heróis do Ar surge na sequência da relevância que quis dar aos diferentes ramos das forças armadas em diferentes épocas da nossa História.

Podemos considerar que os seus três livros publicados compõem uma trilogia?

Sim. Verdadeiramente até mais do que uma trilogia. No Fontes de Guerra, Fontes de Paz, tem algum relevo o exército. No Mar Liberal, a Marinha de Guerra e a importância do domínio do Mar. Por fim, com o Heróis do Ar a aviação militar e a importância do domínio do ar. Outra trilogia é que, considerando a importância e a influência que a Maçonaria teve em cada uma das épocas das diferentes narrativas, resolvi incluir no primeiro livro a descrição de uma cerimónia de iniciação de um aprendiz, no segundo uma passagem ao grau de companheiro, e no terceiro, a elevação ao grau de mestre maçon, que são os três primeiros graus da maçonaria. Há ainda a peculiaridade dos nomes do três principais personagens no Fontes de Guerra Fontes de Paz, Tiago, James e Jacques, que não foram escolhidos ao acaso.

Na sua obra, é percetível um fascínio pela maçonaria, pela religião e pela carbonária. A que se deve esse interesse?

O meu pai foi pastor evangélico. Deixou a sua marca na Igreja Baptista de Leiria, da Marinha Grande, das Caldas da Rainha, de Alcobaça, da Vieira de Leiria, entre outras. Era um homem dedicado a causas filantrópicas e também nesse ponto de vista deixou marca. Naturalmente que foi uma referência para mim. Sou particularmente crítico em relação à Igreja Católica, sobretudo de uma determinada época de obscurantismo e de repressão. Não me revejo em qualquer dogma e, por isso, a minha posição crítica é mais abrangente. Hoje, não professo qualquer religião, respeito a espiritualidade de cada um e sinto-me bem em qualquer lugar onde a minha espiritualidade seja respeitada e sejam procurados os ideais de paz. Por outro lado como maçon, procuro através das minhas obras desmistificar muitos rumores à volta da Maçonaria e tento abordar este tema de uma forma simples, questionando mesmo alguns assuntos que são caros à própria Maçonaria. Um leitor atento referiu-me que a Maçonaria quase que é ela própria um personagem. E eu concordo, pois é intencional. Pela carbonária, não tenho qualquer fascínio. Foi uma organização que teve a sua época, com metodologias de ação questionáveis. Muitas vezes, tem sido confundida com a Maçonaria e, por isso, tem dado lugar a muitos mal-entendidos, que procuro esclarecer no Heróis do Ar. Quero deixar bem claro que as minhas «provocações», como gosto de lhes chamar, em nada concorrem para a diminuição intelectual do outro, mas são, isso sim, um convite à reflexão e a uma contextualização histórica.

A cidade e a região de Leiria surgem frequentemente como cenário das suas narrativas. Paralelamente, nas suas obras, os leitores são desafiados a conviver com personagens que marcaram a história deste território. Considera que Leiria tem um património histórico-cultural inspirador?

Sem dúvida! E isso para mim é uma espécie de ponto de honra. Independentemente dos posicionamentos políticos ou religiosos que Leiria tenha tomado no passado, fazem parte de um património histórico e cultural que deve ser preservado e divulgado. A região esteve sempre presente nas minhas narrativas e faço questão que esteja no futuro. Leiria tem potencial capaz de despertar paixões e é notório o trabalho que nos últimos anos tem sido feito no sentido de levar Leiria mais longe. Pela minha parte, procuro fazer passar a minha paixão e dar o meu modesto contributo.

Sente-se satisfeito com a receção que os livros têm tido junto dos leitores?

Muito. Começou pela concretização de um sonho, escrever um livro. Depois esse livro teve leitores que puxaram para o segundo e, mais tarde, para o terceiro. O Heróis do Ar, em apenas cinco meses, surge com a segunda edição. Só posso estar satisfeito, mas sobretudo grato aos meus leitores.

Dos livros que já publicou, há algum que tenha gostado mais de escrever? Porquê?

São todos diferentes. O Fontes de Guerra, Fontes de Paz foi uma edição de autor, a primeira experiência que, quase a medo, resultou numa grande exposição. Para o Mar Liberal, já parti mais ciente de que tinha leitores, e o meu grau de exigência na pesquisa e no trabalho foi maior. Deixei de sentir a tal exposição para sentir uma entrega aos leitores. O facto de ter suscitado o interesse da Editora Marcador foi um passo determinante como motivação e para alguma evolução. Um processo de aprendizagem muito marcante e que devo ao profissionalismo de todos os colaboradores da Marcador, em particular ao meu editor, o Hugo Gonçalves, para com quem tenho uma dívida de gratidão. Este processo de aprendizagem veio a repercutir-se na elaboração do Heróis do Ar e o processo de aprendizagem continuou com o excelente trabalho da Cultura Editora, do João Gonçalves que continua a acreditar em mim, e da infinita paciência da minha editora e revisora, a Paula Caetano. Tenho, portanto, dificuldade em dizer qual gostei mais de escrever, pois com cada um saí mais rico e com noção que tenho muito a aprender ainda. É tão difícil de responder a esta questão, como será a um pai confrontado com a pergunta: qual dos filhos gosta mais?

Escreve todos os dias? Por prazer ou necessidade?

Não escrevo todos os dias. Escrevo quando uma ideia surge e depois é difícil parar, tornando-se numa necessidade. Cheguei a passar noites inteiras a escrever ou a acordar de noite com necessidade de escrever. Nunca escrevi por obrigação ou por compromisso editorial. Apenas por prazer. Ando sempre com o meu caderno de apontamentos à mão e, por vezes, do anotar de uma ideia à beira-mar, ou ao apreciar uma estrela cadente, ou numa conversa informal com amigos, pode surgir uma mão cheia de páginas…

Tem algum ritual de escrita?

Ritual não tenho. Para mim é fundamental visitar e conhecer minimamente os locais que descrevo nas minhas narrativas. Receber a energia telúrica que emana desses locais. Procuro também vivenciar as experiências que descrevo. Por exemplo, para melhor entender a vida a bordo de um veleiro, para além de imensa bibliografia que consultei, fui passar um fim-de-semana a bordo do Creoula, como parte da guarnição, para ter essa vivência. A descrição da batalha do cabo de S. Vicente no Mar Liberal foi escrita a bordo. Para o Heróis do Ar, fui fazer um voo num avião com 67 anos, de vidro aberto e a apanhar o vento na cara e ainda experienciei algumas manobras acrobáticas, de defesa ou ataque, para ter essa vivência. Montei e pintei kits de miniaturas de aviões da época e, ao descrever algumas dogfights, brincava com os aviões sobre a minha secretária, tal qual uma criança. Estranho? Talvez, mas muito inspirador e estou certo que com impacto na intensidade das narrativas.

Lembra-se do momento em que viu pela primeira vez um livro seu nas montras das livrarias? Descreva-nos como foi a sensação.

Uma expressão que uso muito: fiquei de coração cheio! Foi como ver um pedaço de mim, olhar-me ao espelho. Mas melhor ainda foi ver uma senhora a ler um dos meus livros na praia. Não resisti e fui perguntar-lhe se estava a gostar. A senhora ficou a olhar para mim, respondeu que sim; conversámos um pouco sobre o livro e só mais tarde depois é que a senhora reparou que eu era o autor. Foi hilariante, mas muito gratificante!

Podemos esperar a publicação de um novo livro para breve?

Depende do significado de breve. Estou já a trabalhar num novo projeto, mas ainda na fase de pesquisa. Já escrevi algumas páginas, mas nada de muito consistente. Neste momento, sinto que tenho uma responsabilidade acrescida. Não gosto de escrever sob pressão. Julgo que se conseguir «mergulhar» com êxito nos próximos meses na época em que me vou situar, em 2020 teremos por aí o meu quarto filho de papel.

Qual a sua maior ambição literária?

É continuar a receber telefonemas, mensagens, e-mails de gratificação e encorajamento. É continuar a ter os leitores a pedir mais. Escrevo para agradar aos leitores, escrevo procurando dar um contributo para o nosso enriquecimento cultural. Se algo de melhor vier por acréscimo, apenas ficarei mais satisfeito.

Obrigada!

Aprende ciência com o «Mestre Carbono», de Filipe Monteiro

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por Sofia Pereira

No próximo dia 20, realiza-se, pelas 15h30m, no Centro de Interpretação Ambiental de Leiria, a apresentação do livro infantil Mestre Carbono, o Cientista, do escritor e cientista Filipe Monteiro.

Mestre Carbono, o Cientista conta a missão de três cientistas que fazem as suas investigações e experiências num laboratório, para descobrir uma solução que permita controlar e reverter as questões climáticas, causadas sobretudo pelo aquecimento global e pela excessiva libertação de CO2. No entanto, durante a noite, contam com a preciosa ajuda dos pequenos habitantes do laboratório – os átomos e as moléculas – que, chefiados pelo Mestre Caborno, se mostram bastante empenhados na salvação da Natureza.

Este livro concilia as palavras e os conceitos de química com as ilustrações apelativas e vivas, tornando-se muito interessante e motivador para promover e divulgar a ciência, e para suscitar a curiosidade e incentivar o interesse dos pequenos leitores.

Paralelamente, esta obra infantil procura homenagear todos os cientistas que, na sua grande maioria, trabalham num laboratório, numa sala, num gabinete ou numa biblioteca, na procura de um mundo melhor.

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Mestre Carbono, o Cientista
Autor: Filipe Monteiro
Ilustrações: Ana Beatriz Marques
Editora: Chiado

Livros que ajudam as crianças a vencer os medos

por Sofia Pereira

Medo do escuro, das alturas, de se separar dos pais, de ser esquecido na escola, de dormir sozinho, dos pais se divorciarem, de personagens assustadores, de barulhos e ruídos estranhos, e da rejeição social são alguns dos medos que fazem parte do crescimento das crianças.

Em boa verdade, é natural que a criança sinta medo e isso é importante. Quando os mais pequenos sentem receio de algo, descobrem esse sentimento e começam a ser cautelosos. Paralelamente, as situações de temor ajudam-nos a avançar ou a fugir de determinadas realidades, tornando-os mais corajosos e resilientes.

O apoio dos pais nesta etapa da infância é crucial. É importante que estes estejam preparados para ajudar as crianças a lidar e a superar este sentimento intrínseco ao seu desenvolvimento, preparando-as para um futuro saudável e tranquilo.

Os livros podem ajudar as crianças a superar os seus medos. Num ambiente seguro e harmonioso, os pais podem e devem falar com os pequenos leitores sobre os seus medos e, através de fantásticas histórias e ilustrações, mergulhar nos seus medos, sem qualquer preocupação, tornando um problema tão delicado mais fácil de ser superado.

Deixamos a sugestão de alguns livros que podem ajudar as crianças a vencer os seus medos:

Maria do Medo – Uma História para Aprenderes a Vencer o Medo, de Rita Castanheira Alves, ilustrações de Carla Nazareth, Booksmile

«A Maria adora a escola, os dias de festa e cantar as suas canções favoritas. Desenha com a mão esquerda, sempre com lápis de cera, e adora tomar banho na banheira cheia de água. Mas a Maria tem um problema. Um problema que aparece todas as noites… Na hora de dormir, lá vem ele: O MEDO! Inclui dicas para os pais ajudarem as crianças a gerir as emoções.»

 

O gato e o escuro, de Mia Couto, ilustrações de Danuta Wojciechowska, Caminho

«A inventividade a que Mia Couto nos acostumou e o seu domínio da língua, numa história para crianças, ou também para adultos partilharem com as crianças. As ilustrações de Danuta Wojciechowska complementam este universo maravilhoso. Para perder o medo do escuro.»

 

 

Onde Vivem os Monstros, texto e ilustrações de Maurice Sendak, Kalandraka

«Na noite em que Max vestiu o seu fato de lobo e começou a fazer travessuras a torto e a direito, a mãe chamou-lhe: «-MONSTRO!» E Max respondeu-lhe: «-VOU-TE COMER!» Então ela mandou-o para a cama sem jantar. Naquela mesma noite, no quarto de Max surgiu uma floresta que cresceu… Esta obra, publicada pela primeira vez em 1963, suscitou certa polémica pelo tratamento nada exemplar para com as crianças, mas tornou-se num clássico da Literatura infantil e juvenil e num referente imprescindível do seu género.
Não só obteve a Medalha Caldecott (1964) e o American Book Award, como também foi eleito pelo The New York Times Book Review como um dos melhores livros ilustrados; desde então foi traduzido em inúmeras línguas e tornou-se num dos títulos mais lidos. Max empreende uma viagem simbólica a partir daí até um lugar fantástico, atravessando um tempo mítico e enfrentando os seus próprios medos. Depois de se tornar no rei de uns monstros tão ferozes como insinuantes, regressa ao ponto de partida, onde o aguarda o jantar.»

Carlota Barbosa, a Bruxa Medrosa, de Layon Marlow, ilustrações de Joelle Dreydemy, Dinalivro

«Era uma vez uma bruxa, mas não pensem que era uma bruxa como as outras. Nada disso. Ao contrário do que é costume, a Carlota Barbosa tem medo de tudo e por isso, em vez de assustar, é ela quem se assusta. E assusta-se por tudo e por nada: treme quando vê um sapo; o escuro deixa-a com os nervos em franja. Se encontra uma aranha, dá logo um salto até ao tecto. E quando voa no céu a alta velocidade, cai da vassoura abaixo se um mocho lhe cruza os ares. Mas a Carlota tem um grande amigo, um companheiro inseparável: é o Espinosa, o seu gato de estimação. Graças a ele, a Carlota torna-se uma bruxa verdadeira e corajosa. E assim perde a sua alcunha… Medrosa!»

O Monstro das Cores, texto e ilustração de Anna Llenas, Nuvem de Letras

«As emoções explicadas às crianças através das cores. A personagem principal é um monstro que muda de cor consoante o que está a sentir. Ele não percebe porque muda de cor e a sua amiga, a menina, explica-lhe o que significa estar triste, estar alegre, ter medo, estar calmo e sentir raiva.»

 

O pequeno livro dos medos, texto e ilustração de Sérgio Godinho, Assírio & Alvim

«Escrito e ilustrado por Sérgio Godinho, este livro fala-nos dos medos da infância, alguns mais fortes que nós, de como ultrapassamos outros (…o cavalo chegou-se à minha mão aberta, que tremia com a maçã em cima. Era a única coisa que lhe podia dar. Foi a única coisa que ele levou. Adeus cavalo, adeus medo dos cavalos.).
Até à história que o avô Francisco Magalhães, tipógrafo de profissão, escreveu para o seu filho João de cada vez que ele tivesse medo. Porque o medo também faz parte de nós (quem não tem medo?) mas quando começa a ser exagerado é preciso controlá-lo, nem que para tal seja preciso saltar, correr, espernear, lutar, falar, responder, perguntar, ou, muito simplesmente, pensar.»

Boas leituras!

 

Novidades no mundo dos livros

por Sofia Pereira

Sol, calor, praia, mar, campo e esplanada são sinónimos de verão. A verdade é que as férias estão (quase) a chegar. Há mais tempo e disponibilidade para usufruir da companhia dos familiares e dos amigos. Mas é também nesta época que se compensa a falta de tempo que, durante o ano, temos para nos dedicar a atividades culturais que nos dão prazer. Que nos relaxam. Que nos enriquecem. Que nos alimentam o corpo e o espírito. Como a leitura. Quem não se sente sereno e num mundo mágico quando lê um livro? Porque podemos ler em todo o lado, basta para isso levarmos na mala, no saco de viagem e/ou de praia ou na carteira um pequeno livro para folhear e deixar-nos viajar pelo seu mundo imaginário e criativo. Sem sair do lugar.

Partilhamos com os nossos leitores o que há de novo no universo editorial, dirigido a leitores de diferentes idades – miúdos aos graúdos, para que possam fazer as vossas melhores escolhas:

A Maratona dos Bichos, texto de Regina Boratto e Vanda Romão e ilustrações de Vanda Romão, Editorial Caminho

«Três velhos amigos — um porquinho, um urso panda e uma tartaruga — adoravam corridas e sonhavam em ser velozes e ágeis como os felinos.
Resolveram, então, organizar uma maratona e correr também! Como não eram muito velozes, acharam melhor convidar outros animais, também lentos por natureza, para aumentar as hipóteses de ganharem.
E foi assim que um bicho preguiça, um rinoceronte e um burrinho entraram na disputa.
Os três amigos preparavam-se para vencer, mas quando a corrida começou, acabaram por se atrapalhar… E as surpresas também apareceram! O grande vencedor surpreende, dando uma lição a todos os que duvidaram da sua vitória.»

A Revolta dos Vegetais, de David  Aceituno e Daniel Montero Galán, Nuvem de Letras

«Os vegetais estão fartos! … Fartos de meninos chorões e queixinhas que nunca acabam o que têm no prato. Por isso, disseram BASTA! e reivindicaram o seu lugar no mundo. Como? com a revolta mais endiabrada, divertida e vitamínica jamais vivida no interior de um frigorífico. Um álbum ilustrado muito divertido e original para incentivar as crianças a comer vegetais.»

Se Vir Um Ovni… Peço-lhe Boleia, de Nurb, Planeta Editora

«Um manual de sobrevivência para o fim da adolescência – início da idade adulta. O popular YouTuber e cantor propôs-se escrever um livro que fosse uma espécie de manual para a transição entre a vida adolescente e a adulta, relatando as experiências e lições aprendidas na sua vivência. Mas, ao reflectir sobre a vida e o mundo que o rodeia, acabou por perceber que quem precisa de um manual para sobreviver neste planeta é ele.»

Por Treze Razões, de Jay Ashe, Editorial Presença

«Não podes parar o futuro, nem voltar atrás ao passado. A única maneira de perceberes o mistério… é carregando no play. Clay Jensen não quer ter nada a ver com as cassetes gravadas por Hannah Baker. Hannah está morta. Os seus segredos foram enterrados com ela. Mas a voz de Hannah diz a Clay que o nome dele está gravado naquelas cassetes e que ele é, em parte, responsável pela sua morte. Clay ouve as gravações ao longo da noite. Ele segue as palavras gravadas de Hannah pela pequena cidade onde vive… e o que descobre muda a sua vida para sempre. Por Treze Razões é um romance intenso e sempre atual, adaptado a minissérie pela Netflix.»

O Pianista de Hotel, de Rodrigo Guedes de Carvalho, Publicações Dom Quixote

«O Pianista de Hotel transporta-nos numa melodia.
É uma entrada para um mundo regido pela linguagem da música, pela sua força e beleza, presentes no ritmo de cada frase, de cada parágrafo rigorosamente medido.
Livro em camadas, nele se cruzam diversos planos, diversas histórias perpassadas pelo poder redentor da música que entra e rasga, a solidão, a dor e o vazio das pessoas que habitam nestas páginas. Com um vasto subtexto, a densidade das personagens está carregada de mistérios que nos prendem a sucessivas interrogações.
Há um pouco de nós em todas elas.
Há muito de nós neste mergulho ao mais fundo da alma humana.
É um romance que se lê e ouve, que mantém todos os sentidos alerta. Uma pauta musical, com andamentos diversos, que acabam por se cruzar numa vertigem imprevisível de autêntico thriller psicológico.
E, depois, há o pianista…»

Escrito na Água, de Paula Hawkins, Topseller

«Um thriller intenso, da autora do bestseller mundial A Rapariga no Comboio. Cuidado com as águas calmas. Não sabemos o que escondem no fundo. Nel vivia obcecada com as mortes no rio. O rio que atravessava aquela vila já levara a vida a demasiadas mulheres ao longo dos tempos, incluindo, recentemente, a melhor amiga da sua filha. Desde então, Nel vivia ainda mais determinada a encontrar respostas. Agora, é ela que aparece morta. Sem vestígios de crime, tudo aponta para que Nel se tenha suicidado no rio. Mas poucos dias antes da sua morte, ela deixara uma mensagem à irmã, Jules, num tom de voz urgente e assustado. Estaria Nel a temer pela sua vida? Que segredos escondem aquelas águas? Para descobrir a verdade, Jules ver-se-á forçada a enfrentar recordações e medos terríveis há muito submersos naquele rio de águas calmas, que a morte da irmã vem trazer à superfície. Um livro profundamente original e surpreendente sobre as formas devastadoras que o passado encontra para voltar a assombrar-nos no presente. Paula Hawkins confirma, de forma triunfal, a sua mestria no entendimento dos instintos humanos, numa história com tanta ou maior intensidade do que A Rapariga no Comboio

Boas leituras!

 

Dia Mundial do Livro: qual a importância da leitura?

por Sofia Pereira

Hoje é o Dia Mundial do Livro!
O Dia Mundial do Livro é celebrado, desde 1996 e por decisão da UNESCO, a 23 de abril. Esta data foi escolhida com base na tradição catalã segundo a qual, neste dia, os cavaleiros oferecem às suas damas uma rosa vermelha de São Jorge, e recebem em troca um livro, testemunho das aventuras heróicas do cavaleiro. Em simultâneo, é prestada homenagem à obra de grandes escritores, como William Shakespeare e Miguel de Cervantes, falecidos em abril de 1616.

A leitura deve ser um hino à vida. O contacto com o livro como instrumento de trabalho e de lazer facilita o acesso à cultura, à informação e à educação, fomenta hábitos de leitura, contribui para a preservação das tradições e da cultura locais, estimula a inovação educacional, ampliando os horizontes sociais e culturais e contribuindo para o desenvolvimento democrático das sociedades, base de uma cidadania ativa e plena.

Para assinalar a data, a Fábulas convidou alguns leitores a partilharem a importância da leitura nas suas vidas:

Raquel Cravo, 6 anos, aluna do 1º ano

«Ler é muito importante porque aprendemos todas as coisas do mundo. Adoro ler e estou muito feliz porque já consigo ser eu a ler os livros sozinha.»

Alunos do 3º ano da turma 18 da Escola Básica do 1º ciclo da Gândara dos Olivais, Leiria

«A leitura é muito importante porque nos transporta para lugares mágicos. Permite-nos imaginar e viver aventuras fantásticas. Quando lemos, conseguimos esquecer as nossas tristezas.»

Fábio Canceiro, 31 anos, Jornalista

«É difícil descrever a importância que a leitura teve na minha vida. Desde que me conheço que as letras e as palavras, os livros, fazem parte da minha vida. Seja na construção de cenários imaginários seja no melhor conhecimento do mundo real. Graças aos livros e à leitura abri portas, quebra fronteiras, desvende mistérios. Não consigo imaginar a minha vida sem livros.»

André Barros, 32 anos, Compositor e Pianista autodidata

«Parece-me que em todos os géneros literários persiste, por parte do seu autor, uma vontade inequívoca de partilha. Seja esta de factos históricos ou científicos, de estados de espírito ou de sentimentos recalcados, de mundo ficcionados ou de relatos autobiográficos, a verdade é que de um livro comungamos na mesma medida em que se fôssemos o interlocutor presencial do autor da obra. E que privilégio é poder fazê-lo com tamanha intimidade e ao tempo que queremos… Sempre achei curioso que um poema musicado impõe necessariamente o seu tempo através da música que o acompanha, confinado ao seu ritmo e duração, sendo que um poema escrito adapta-se ao tempo de cada leitor, individualmente. Como apaixonado pelos sons confesso que para mim não há melhor combinação do que uma boa leitura potenciada por uma consonante paisagem sonora instrumental! Parabéns aos autores que, tantas vezes, nos comunicam de forma absolutamente altruísta e indelével!»

Catarina Pereira, 34 anos, Professora do 1º ciclo

«Para mim, a leitura tem uma grande importância. Com ela, estimulamos a nossa capacidade de aprendizagem e memória, como também a nossa escrita. Com a leitura desenvolvemos ainda a nossa imaginação, criatividade e adquirimos novos conhecimentos. E, para além de tudo isto, é um ótimo passatempo com efeito terapêutico que nos permite sonhar! Por isso, acho importante a leitura tanto nas crianças como nos adultos.»

Micael Sousa, 34 anos, Engenheiro Civil

«Ler para mim é a oportunidade de aprender, de aceder a conhecimentos que de outra forma me estariam vedados. Ler permite quebrar as fronteiras do tempo e do espaço, permite conhecer ideias distantes na sua pureza original. Podemos escapar à pressão e ditadura do presente acelerado, pois ler desenrola-se ao nosso ritmo, numa viagem para outra dimensão.»

Rita Pereira, 36 anos, Psicóloga

«Para mim, a leitura é importante porque ao lermos um livro este transporta-nos para outras vivências e novas realidades, desenvolvendo assim o nosso imaginário e a nossa criatividade. Ajuda-nos a libertar emoções e sentimentos reprimidos, a conhecer melhor o nosso interior e as pessoas que nos rodeiam, contribuindo para um melhor bem-estar aos níveis da saúde mental, emocional e social. No fundo, acaba por nos ajudar a crescer pessoal, espiritual e profissionalmente.»

Telma Fontes, 39 anos, Funcionária Pública

«Não me lembro de quando aprendi a ler, lembro-me unicamente de escrever em espelho porque era mais fácil e lembro-me, lembro-me perfeitamente do dia em que li Blaupunkt na porta do frigorífico lá de casa. Já nessa altura olhava para o copo meio cheio quando ele se apresentava meio vazio e disse rapidamente para a minha mãe: é frigorífico no país de outras pessoas. Deixo aqui o meu agradecimento aos meus pais por terem sempre livros em cima das suas mesinhas de cabeceiras, uns castanhos ou verdes da Círculos de Leitores, grandes, de uns escritores com nomes diferentes, como Alexandre Herculano e Eça de Queiroz. E agradeço também por nunca me deixarem faltar os livros coloridos no meu quarto, os da Anita e os da Condessa de Segur. E, claro, ao senhor da carrinha da Calouste Gulbenkian que me deixava sempre levar mais livros do que o permitido!
A importância da leitura da minha vida? Deve ter muita, não me lembro de como era dormir, sem ter um livro ao lado!»

Célia Alves, 40 anos, Funcionária Pública

«Há pessoas tão pobres, tão pobres, que só têm dinheiro! Esta frase feita ajuda-me a esclarecer o que, para mim, a leitura tem de tão especial uma vez que, independentemente do estrato social e da condição financeira, todos podemos ler! A leitura aguça-nos a sede de viver e permite-nos tudo… viajar, conhecer, sentir!! Quem nunca sonhou e foi feliz devorando as letras escritas por alguém com tanta paixão como quem as recebe, humildemente no seu coração?»

Saul António Gomes, Professor Universitário

«Ler é a oportunidade do encontro, da reflexão, da descoberta do maravilhoso e do sonho, mas também a oportunidade de crescer na vida e de se aprender a olhar o mundo de forma mais original, pessoal e sem limites. Ler por necessidade, ler para debater, ler para vencer barreiras e estarmos disponíveis para cada novo amanhã.»

Feliz Dia Mundial do Livro! E boas leituras!

Entrevista a Catarina Nunes de Almeida

por Sofia Pereira

Catarina Nunes de Almeida nasceu em Lisboa, em 1982. Licenciada em Língua e Cultura Portuguesas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ensinou, entre 2007 e 2009, Língua Portuguesa na Universidade de Pisa. Em 2012, concluiu, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, uma Tese de Doutoramento intitulada «Migração Silenciosa – Marcas do Pensamento Estético do Extremo Oriente na Poesia Portuguesa Contemporânea» e, atualmente, trabalha num projeto de investigação de Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, também no âmbito do Orientalismo Português. A sua ligação à poesia iniciou-se com a publicação de poemas em revistas literárias portuguesas e estrangeiras e a participação em diversos encontros internacionais de poesia. Tem cinco livros de poesia publicados –  Prefloração (2006), A Metamorfose das Plantas dos Pés (2008), Bailias (2010), Marsupial (2014), Achamento (2015) –  e um dirigido ao público infantojuvenil – O dom da palavra (2016).

A Fábulas entrevistou a autora. Catarina, que desde cedo manifestou um enorme fascínio pelo Teatro e pela Literatura, tendo frequentado diversos cursos e oficinas criativas, fala-nos do seu gosto pela poesia e do seu percurso literário.

Que papel desempenha a poesia na sua vida?
Não desempenha um papel. Quando muito a poesia está na assistência. Umas vezes aplaude-a de pé, outras levanta-se e vai-se embora. Quando leio um poema (ou escrevo) agrada-me sobretudo aquela sensação de poder entrar onde não há tempo. Num haiku, por exemplo, nunca sei se me demoro por quinze segundos, se por quinze séculos. Isto é o que me faz bem na poesia, ir para fora de pé e afogar-me.

Muitos estudos psicológicos concluem que a poesia pode ter maiores benefícios para o bem-estar do ser humano do que os livros de autoajuda. Concorda?
Esses estudos deixam-me arrepiada. É uma visão muito utilitarista da poesia, que sinceramente não me interessa. Talvez possamos dizer, invertendo um pouco os termos, que cada poeta escreve o seu próprio livro de autoajuda. Mas sabendo de antemão que no final não salvará ninguém, nem sequer a si próprio.

Em que momento da sua vida surgiu o encanto pela leitura e pela escrita de poesia?
O amor pela leitura e pela escrita nasceu antes de saber ler ou escrever. Os livros de histórias interessaram-me sempre e eu gostava de os receber, gostava que os adultos mos lessem. Outras vezes imaginava, inventava a partir das ilustrações, como qualquer criança. Também era uma grande criadora de dramas e tragédias para as minhas bonecas. A escrita ia aparecendo assim: frases ou cantilenas que se inscreviam nos meus pensamentos. Neste aspeto, o contacto com a natureza, nos verões com os meus avós, foi muito importante para tornar os meus sentidos disponíveis. Observar os adultos era uma coisa que adorava. É importante que uma criança aprenda a ver além do que é objetivamente visível e lhe seja dado espaço para partilhar as suas descobertas – por mais simples e comuns, devem ser recebidas como coisas raras. Assim uma criança vai aprendendo a colecionar os seus pequenos milagres e a pensar com poesia.

É uma autora da novíssima poesia portuguesa. Há uma proximidade em estilo nos novos poetas contemporâneos?
Do lado de dentro é difícil ter uma visão do conjunto. Haverá coincidências em certas angústias que perpassam a nossa geração, no ritmo da escrita (que reflete o da própria vida), nos espaços das cidades que partilhamos e que coabitam vários poemas. Porém, não existe atualmente um movimento estético organizado que reúna várias vozes como os que existiram noutros momentos.

Quando lemos os seus livros, facilmente percebemos que há uma forte ligação ao Oriente. Como surgiu esse fascínio?
O interesse pelo Extremo Oriente foi crescendo à medida que desenvolvia a minha investigação de doutoramento. Esse interesse, que começou por ser puramente estético – pela poesia e pela arte –, rapidamente se transformou num interesse espiritual. Certos aspetos da tradição budista foram ao encontro de questões profundas, silenciosas, que estavam comigo há muito tempo. E à medida que avanço em leituras – ou que pratico exercícios como a meditação – o meu entendimento do mundo transforma-se e a escrita também se transforma. Todo este processo está ainda muito ativo e tem abalado poderosamente a minha estrutura, mas descrevê-lo é quase impossível.

Com O dom da palavra estreia-se na literatura para crianças e jovens, criando «uma espécie de poema contínuo, escrito sob a forma de diálogos». Fale-nos um pouco sobre este livro.
O João Concha, que ilustrou este livro e foi também o seu editor, convidou-me um ano antes para escrever o número seguinte da Colecção Alice (Não Edições), criada a pensar em miúdos mais ou menos graúdos. A ideia era fazer qualquer coisa que se aproximasse mais da poesia, algo que me pareceu bastante difícil. Mas sou amiga do João há muito tempo e sinto imensa afinidade com o seu trabalho – tínhamos, aliás, já colaborado num projeto antes deste, embora não tenha saído da gaveta –, pelo que lá me enchi de coragem. Tinha uma fonte riquíssima lá em casa, o meu filho, a quem acabei por dedicar o livro. As crianças são uma espécie de reis Midas da linguagem: quase todas as palavras que proferem se transformam em ouro. Passei a fazer esse exercício de o escutar com mais atenção do que nunca, de me concentrar na essência das suas perguntas, das suas inquietações, na forma como reconstruía os conceitos, o discurso. E foi um exercício que nunca mais abandonei, porque me faz visitar uma série de raízes: as da minha própria linguagem, as das minhas ideias e as dos meus afetos.

Podemos identificar versos e imagens de outros poetas na sua poesia?
Sim, isso acontece, como é natural. Todos nós temos mestres e entramos em diálogo com eles – algumas vezes essas referências transparecem de forma evidente, outras vezes são mais subtis. Também já aconteceu esses ecos revelarem-se mais tarde, quando releio um poema publicado há algum tempo. Isso mostra que essa revisitação é também um processo inconsciente. Portanto, prefiro não destacar (ou destapar) aqui nenhum nome.

Como é o seu processo de criação artística?
Nada organizado. Posso passar várias semanas sem escrever um verso e a certa altura ser atravessada por ele (ou por uma imagem antes dele) e no momento mais inoportuno. É comum guardar fragmentos no telemóvel, nos rascunhos das sms. Ultimamente, os poemas saem dum só jorro, por vezes até difícil de acompanhar só tendo duas mãos. Depois volto a eles, claro, para os limar, mas cada vez menos. Para os meus três primeiros livros escrevia sempre os poemas em caderninhos. O acto de me sentar a um computador inibia a fluidez e o despojamento de que eu precisava. Além de que, alguns versos deixados de lado, por vezes encontravam salvação numa segunda ou terceira leitura. Depois, aos poucos, fui-me habituando, porque passei a estar mais tempo a trabalhar ao computador e, por vezes, para não deixar fugir um verso, acomodava-o logo ali no documento ao lado. Já no que respeita à relação entre os poemas, quando se entra na fase de escrever o livro propriamente dito, com uma estrutura pensada, o computador facilita um pouco. Quando publico um livro, geralmente nos tempos que se seguem ando muito às cegas, não encontro logo um fio condutor a partir do qual escrever. Mas quando ele me aparece, nunca mais o largo: sei que vou escrever um livro e não uma coletânea de poemas.

 

«Os Lusíadas»: poema de fundação nacional

por Sofia Pereira

Os Lusíadas de Luís de Camões, poema épico, tem como núcleo central estruturante da obra a viagem inaugural de Vasco da Gama à Índia (1948). A viagem deste navegador estava já muito remota e bastante tratada discursivamente para aparecer como evento histórico marcante. Quando Camões vai à Índia, fá-lo num período de declínio do Império Português no Oriente. Assim, a epopeia surge como uma forma de exaltação de um Império já conscientemente crepuscular.

Desde há muito tempo que se ansiava em Portugal por um poema de vitórias; desde a expansão portuguesa, que marcou a verdadeira abertura ao “outro”, que se sentia a necessidade de celebrar a entrada numa nova fase da Humanidade. Esta vontade de escrever uma epopeia era profundamente humanista, assim como era o pensamento camoniano.

Cumprido esse desejo por parte de Camões, herdámos uma obra símbolo de um mundo axiologicamente marcado por princípios épicos/guerreiros muito próprios. O intuito do autor é (re)fundar a nação, a visão de Portugal pelos portugueses e pelos estrangeiros. Pretende sublimar a glória de um dos primeiros países no tempo, com fronteiras territoriais bem definidas. Daí a sua preocupação em produzir uma arqueologia e uma genealogia portuguesas.

A epopeia camoniana divide-se em quatro planos: o da viagem, o da narração histórica, o mitológico e o das considerações do Poeta. É através destes planos, do discurso de Vasco da Gama e de alguns deuses que tomamos contacto e conhecimento com o espírito de aventura, a universalidade, a heroicidade e a religiosidade, valores inerentes à empresa dos descobrimentos/navegações, que adquirem toda a dimensão estética que permite a fusão harmoniosa da imagem nacional/imperial ambicionada pela política nacional de então.

A nação portuguesa é apresentada no poema como centro de uma pátria de fronteiras em expansão. Os Lusíadas convertem-se na metáfora privilegiada da nação, contribuindo, dessa forma, para a criação da imagem que temos da nossa identidade.

A universalidade camoniana inclui toda a aventura ética, estética e religiosa que a travessia implicou em termos pessoais e nacionais. São estes aspetos narrados, que aliados à cultura recebida do Humanismo, se tornam símbolos de uma nação em expansão, Portugal. Esta epopeia é o reflexo não só da aventura vivida pelo povo, mas também a do próprio autor.

Com este poema temos acesso aos acontecimentos que foram ocorrendo ao longo dos tempos e que tornaram Portugal num país duplamente central: centro face à Europa como descobridores de novos mundos e centro face aos outros na Europa.

Os Lusíadas exprime a ideia de Portugal como núcleo de expressão, ideário do renascimento. Um olhar em busca do projeto imperial de D. Manuel, com aspetos medievais, como o messianismo, a missão de expandir a fé e restaurar o poder de Jerusalém.

É, de facto, a história da fundação do nosso país enquanto nação, desde os seus primórdios até à sua vontade de expansão à escala planetária, divulgando a fé e o cristianismo tão característicos dos Portugueses.

Desassossegos, curiosidades e inquietações na literatura: entrevista ao escritor Paulo Kellerman

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(c) Ricardo Graça

por Sofia Pereira

Paulo Kellerman nasceu em Leiria, em 1974. Editou, em edições artesanais e limitadas de autor, Livro de Estórias (1999), Dicionário (2000), Sete (2000), Uma Pequena Nuvem Solitária perdida no Imenso Azul do Céu (2001), Fascículo (2002 a 2005, 75 edições), Da Vida e da Morte (2005). Foi um dos responsáveis pela conceção e edição da revista literária Cadernos do Alinhavar e é autor do blogue A Gaveta do Paulo. Participa na organização de diferentes eventos e iniciativas culturais.

A Fábulas entrevistou o escritor. Paulo Kellerman fala-nos do seu percurso e gostos literários, do universo dos seus livros e da importância da literatura na vida de todos nós.

Como surgiu o gosto pela escrita?
Na escola, quando percebi o alcance da palavra escrita. Os professores liam textos meus à turma e havia sempre grandes reações, geralmente de riso porque eram textos com algo de humorístico. E eu, num canto, assistia ao poder que essas palavras tinham, as reações que causavam. Não era eu que desencadeava as reações, eram as minhas palavras. Essa descoberta foi determinante.

Lembra-se do primeiro livro que leu na infância?
Não lembro. As recordações mais fortes e antigas referem-se aos Cinco, mas certamente que terei lido muitos livros antes; contudo, não tenho memória dessas leituras.

Qual a importância de A Gaveta do Paulo?
O blogue foi criado em sequência da publicação do livro Gastar Palavras, em 2005. Alguns dos contos que tinha pré-selecionado para esse livro acabaram por ficar de fora e criei o blogue para os divulgar. A partir daí, a Gaveta ganhou uma enorme importância; os livros que fui publicando foram sendo alinhavados e pré-publicados no blogue, conto a conto, permitindo-me um contacto imediato com os leitores, uma interatividade muito estimulante e enriquecedora. Foi tornando-se um sítio de experimentação e partilha, de crescimento, de liberdade. Mais tarde, com a explosão das redes sociais, os blogues tornaram-se menos apetecíveis para muita gente, mas a Gaveta continua a ser um local especial para mim.

Miniaturas, como o título sugere, é um livro de pequenas histórias, num total de cinquenta e seis, recheadas de humor. Considera que o humor pode ser uma forma de nos aliviar das vicissitudes da vida?
O humor pode ser uma distração poderosa. Mas também pode ser uma forma muito incisiva de nos fazer pensar, de nos confrontar, de nos agitar.

A morte, a solidão ou o confronto interior são alguns dos temas presentes no livro Gastar Palavras. É seu objetivo levar os leitores a identificarem-se e a refletirem sobre as emoções e os pensamentos inerentes a todo o ser humano?
O objetivo é confrontar o leitor consigo próprio e desassossegá-lo. Já percebi que muitos leitores procuram na literatura uma possibilidade de fuga ou de sonho, ou até respostas para as suas inquietações. Mas os escritores que julgam ter respostas ou soluções assustam-me um bocado. Prefiro causar alguma inquietação, algum desconforto; porque é o desconforto que nos impele a avançar, arriscar, tentar. Quando estamos confortáveis, tendemos a ficar quietinhos.

Os Mundos Separados Que Partilhamos narra, num tom intimista, situações e momentos contaminados por solidões, cumplicidades, melancolias e obsessões. Podemos ver nele um retrato da sociedade dos dias de hoje?
Para quem escreve, a observação é fundamental. E um texto inclui, consciente ou inconscientemente, muito do que é observado. Um texto será uma mistura de observação, reflexão, imaginação e vivência; nesse sentido, será sempre um retrato da contemporaneidade do autor. Mesmo que se escreva ficção científica ou romance histórico.

Mente-me e seremos mais felizes é o título de um dos seus e-books. Nele, podemos encontrar a estória «Toda a gente sabe que o facebook é uma treta». Considera que as redes sociais podem ser prejudiciais para os relacionamentos?
As redes sociais têm potencialidades extraordinárias mas também assustadoras. Por esta altura, é impossível pensar em redes sociais e não lembrar o que o Trump faz neste âmbito, a forma como manipula a realidade usando o Twitter.

Silêncios entre Nós é um livro que, à semelhança dos anteriores, aborda as relações humanas no mundo contemporâneo. O silêncio pode ser audível?
O silêncio pode ser tão ruidoso que é capaz de nos ensurdecer. Devia haver nas escolas, juntamente com o português, a matemática e a educação física, uma disciplina que ensinasse como lidar com o silêncio, como aprender a geri-lo e até a saboreá-lo.

Chega de Fado é um ato revolucionário?
Neste país de consensos meio podres e quase sempre aparentes, dizer que não se gosta de fado é quase um ato de rebeldia. E, por acaso, não gosto mesmo nada de fado. Mas o fado a que se refere o título não é o género musical, é antes aquele espírito de ladainha e lamentação, de conformismo, de lamuria e queixa, que caracteriza tantos discursos e posturas. E nesse sentido, sim: chega de fado.

O Céu das Mães é o seu primeiro livro infantojuvenil, com ilustrações de Rute Reimão. Trata um tema difícil e pouco abordado na literatura para crianças: a perda. Conta a história de um menino que perdeu a mãe e que é confrontado com uma afirmação muitas vezes escutada: «a tua mãe está no céu». Considera que os livros podem ajudar a explicar a morte às crianças?
Mais do que explicar, talvez os livros possam ajudar a lidar com emoções. E não gosto muito da literatura que tenta dar respostas ou explicações, da literatura com lições ou moralismos. Parece-me bem mais enriquecedor quando suscita questões, desassossegos, curiosidades, inquietações. Quando tira o sono, em vez de adormecer.

Com o livro Serviços Mínimos de Felicidade deu o salto da escrita de contos para o romance. Somos comodamente felizes ou ambicionamos uma felicidade esplêndida e impossível de alcançar?
O desejo de uma felicidade esplêndida pode ter muitas formas e materializações, pode ser simplesmente aquilo a que chamamos sonhos; e se deixamos de sonhar, passamos a viver em função do que somos ou temos, não mudamos; não crescemos. Vivemos em serviços mínimos. Essa é uma das ideias presentes no livro: como reagir quando percebemos que deixámos de sonhar?

Muito recentemente, publicou mais um livro dirigido ao público mais novo: A tristeza dá fome, com ilustrações de Lisa Teles. Fale-nos um pouco desta história.
No final dos anos 90, tinha uma espécie de editora caseira, através da qual editava os meus próprios livros; eram edições artesanais, em que eu construía cada um dos exemplares dos livros; depois, oferecia-os. Fiz, deste modo, milhares de livrinhos. A Lisa é a responsável pela Escaravelho, uma editora que também tem uma componente muito importante de trabalho manual na conceção dos seus livros. E isso fascinou-me. Além disso, é uma ilustradora fantástica. Portanto, foi uma enorme honra colaborar com ela neste projeto, foi das aventuras mais fantásticas em que participei. Quanto à estória, nasceu da sugestão de uma aluna, numa visita a uma escola.

Foi autor e concebeu algumas exposições literárias como Foto estórias (2000), As Palavras do Olhar (2002), Pedaços de Literatura (2005) e Insignificâncias (2006). Quer partilhar connosco como foram essas experiências?
Todos esses projetos estiveram relacionados com a exploração do potencial entre texto e imagem, tendo criado contos originais a partir de fotos ou pinturas de diversas pessoas. A relação texto / imagem é algo que continua ainda hoje a apaixonar-me, assim como a possibilidade de colaboração e criação conjunta com autores das mais diversas áreas. A aventura mais recente neste domínio é um blogue chamado Fotografar Palavras, criado há alguns meses. Mas desses projetos de início do século, o que melhor recordo foi uma exposição que criei (e que depois deu origem a um e-book) chamada Sincronismos (2002); marcou-me particularmente porque foi o único trabalho onde, além do conceito e do texto, também concebi as imagens.

sincronismoExposição Sincronismo

Quando lemos os seus livros, percebemos que a escrita é sempre muito fluida e de leitura fácil, mas não deixa de ser inquietante. Tem a ver com as temáticas abordadas ou é um estilo próprio?
Tem a ver com um estilo próprio, com opções técnicas. Sempre fiz experiências do ponto de vista técnico, sempre me testei e me desafiei, sempre refleti sobre a dimensão mais técnica da minha escrita. Existe uma dimensão instintiva e incontrolável na escrita, mas também é fundamental o trabalho puramente técnico de depuração, de análise e corte, de adequação; e este trabalho está em evolução constante, é sempre melhorável.

Ao longo da sua carreira, já foi distinguido com alguns prémios literários. Como encara todo esse reconhecimento?
Encaro como um incentivo, sinto-me agradecido e responsabilizado. Depois, esqueço e continuo a fazer o que tenho a fazer.

É notória a relação de proximidade que mantém com os seus leitores. Como o faz? Provoca isso mesmo ou é a própria ambiência da escrita que a suscita?
Talvez tenha a ver com o facto de encarar a literatura como algo natural e não uma espécie de dádiva divina apenas ao alcance de meia dúzia de privilegiados, como por vezes acontece com alguns escritores. Gosto quando escritor e leitor estão ao mesmo nível, e ambos podem partilhar algo. É possível que a relação de proximidade nasça daí.

Conte-nos uma situação vivida num encontro com os seus leitores e tenha sido particularmente especial.
As idas a escolas são sempre momentos intensos. Houve, por exemplo, situações tremendas em idas a escolas de 1º ciclo para falar sobre o primeiro livro infantil, que conta a estória de um menino que não tem mãe, e onde convivi com meninos que não têm mãe. Uma das experiências mais tremendas que tive foi numa ida a uma prisão, onde estive duas ou três horas com presos que não me conheciam de lado nenhum, nem tinham tido qualquer contacto com o meu trabalho. Mas nos encontros mais convencionais com leitores também acontece todo o tipo de coisa, desde pedidos concretos de conselhos a ameaças de ser processado por ter uma escrita indecente e perturbadora.

Como tem sido a receção dos leitores à sua escrita?
Importante é existir reação, o que custa é a indiferença. As reações vão sendo boas ou más mas geralmente fortes, e isso é que importa. Se fosse como naqueles inquéritos que fazem aos serviços de comunicações, preferia ser avaliado com 1 ou 10, e não 5.

Onde e quando é que gosta mais de escrever?
Não tenho rituais de escrita nem grandes exigências. Preciso apenas de ter um desejo genuíno de escrever, um desejo que por vezes é uma necessidade. E mesmo que as mãos não estejam a teclar ou a rabiscar, a mente está muitas vezes a escrever. Durante a condução, por exemplo.

Qual foi o último livro que leu?
O meu nome é Lucy Barton, de Elizabeth Strout.

Se fosse uma personagem literária, qual seria? E porquê?
Tom Sawyer. Foi uma personagem que marcou muito a minha infância, através da série que passava na televisão nos anos oitenta. Na altura não fazia ideia que tinha origem num livro. Nunca quis ser bombeiro ou piloto ou super-herói. Queria ser o Tom Sawyer.

Os livros podem ser amores de perdição, ora porque nos cativam e relemos vezes sem conta, ora porque nos desapontam e nunca mais os voltamos a ler. Fale-nos de um livro que o tenha marcado e daquele que, de alguma forma, o desiludiu.
Os livros não desiludem, eu é que me desiludo porque tenho entusiasmos e expectativas irrealistas. Acontece com frequência. A última vez foi com o último livro que li: O meu nome é Lucy Barton, de Elizabeth Strout. Quanto a livros marcantes, prefiro aqueles que deixam marcas subtis, por vezes inconscientes, ou apenas percetíveis com o tempo. O Albert Cossery dizia: «Se um determinado livro não tiver sobre o leitor um tal impacto que no dia seguinte ele deixe de ir ao emprego, esse livro nada vale.» Não concordo muito com isto, se uma pessoa precisa de um livro para mudar de vida, algo me parece errado. Acredito mais que dezenas de livros ao longo de anos possam fazer alguém mudar a perspetiva, mudar o foco; na verdade, a literatura serve para isso mesmo, é essa uma das suas riquezas: proporcionar novos focos, novos ângulos.

Qual o/a escritor/a que convidaria para jantar? Porquê?
Elena Ferrante. Porque gosto bastante dos seus livros e porque a própria autora em si é uma espécie de personagem literária. Seria muito interessante tentar perceber onde começa a realidade e termina a ficção.

Que conselhos daria a um jovem que quisesse gastar as palavras na publicação de um livro?
Surpreende-me quando encontro pessoas que desejam escrever mas não leem. É fundamental, é o primeiro passo: ler. Descobrir, perceber, saborear, aprender através do que se lê. A leitura é o oxigénio de quem escreve, ou pelo menos um dos oxigénios. Também importa ser curioso, fazer questões e ter inquietações, imaginar, ter vontade de observar o mundo com um olhar diferente do que se usa habitualmente. Não ter medo de arriscar.

Podemos esperar a publicação de novos livros para breve?
Publiquei dois livros no espaço de três meses. Agora, é tempo de acalmar um pouco.

Afonso Cruz, o escritor que pergunta, compreende e sente

afonso-cruz_copyright_paulo-sousa-coelho(c) Paulo Sousa Coelho

Escritor, ilustrador, cineasta, ilustrador e ainda músico na banda The Soaked Lamb, Afonso Cruz é um dos mais interessantes autores portugueses da atualidade. Nasceu em julho de 1971, na Figueira da Foz e frequentou a Escola António Arroio, a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira. Apaixonado por viagens, publicou o seu primeiro romance em 2008 e, desde então, a escrita tem sido o combustível da sua vida, com livros muito inspiradores. Ao longo da sua carreira, foi já distinguido com diversos prémios e galardões literários e viu a sua obra chegar além-fronteiras, a países como Brasil, Bulgária, Canadá, Colômbia, Croácia, Eslováquia, Espanha, França, Hungria, Itália, Macedónia, Polónia, Sérvia, República Checa e Turquia.

A Fábulas entrevistou o escritor. Afonso Cruz, muito atento à realidade que o rodeia, fala-nos do seu percurso como autor de livros para todos os leitores – crianças,  jovens e adultos – e da sua paixão pelo mundo das artes.

Considera que tem sido dado espaço suficiente à literatura em Portugal?
Creio que os escritores esperam sempre mais. O suficiente é uma palavra terrível, que implica a sensação de que nos acomodamos ao mundo tal como ele nos é dado. Há sempre muito mais a fazer, muitas milhas a percorrer.

Sabemos que todos os escritores têm autores de referência. Quais são os seus?
Vários, evidentemente. Sem ser fastidioso e exibir uma lista, refiro três: Saint-Exupéry, Kazantzakis e Dostoievsky.

É escritor, ilustrador, músico e cineasta. Em que mundo vive melhor?
Depende das alturas, mas passo mais tempo a escrever. Todas essas áreas me preenchem de maneira diferente, e não abdicaria de nenhuma, mas a escrita faz-me viver de um modo mais completo, uma vez que passo mais tempo com ela.

Quando lemos os seus livros, ficámos com a ideia de que é um leitor nato e compulsivo. Lê desde muito cedo? E como começou a ter acesso aos livros?
Leio muito, sim, e não escreveria se não lesse. Não sei ao certo quando comecei a ler nem quando me tornei leitor, mas os livros que li na adolescência marcaram-me muito, em especial os livros que eram do meu pai. Ao pegar em livros que não eram dirigidos especificamente para crianças, entrei noutro mundo. Costumo dizer que a a grande viragem da minha adolescência não aconteceu por causa das hormonas, mas da literatura.

Qual foi o livro que mais o marcou em criança? Porquê?
Em criança, não sei. Mais tarde, aos doze anos, li um livro de Dostoievsky que marcou muito a minha vida enquanto leitor. Era um conto chamado O sonho de um homem ridículo. Também, ao mesmo tempo, com a bd, comecei a ler outras coisas, como os livros de Hugo Pratt. O desenho, que fugia a normas convencionais, foi uma revelação. Com Dostoievsky identifiquei-me com a responsabilidade de cada um e com a importância do julgamento interior para as nossas vidas.

Como surgiu a paixão pela escrita?
Muito mais tarde, nunca pensei em ser escritor, mas acho que, a certa altura, tudo o que tinha lido começou a derramar-se, a tornar-se visível. Foi mais ou menos natural, sem que o que tivesse planeado, assim como uma criança começa a falar.

Lembra-se do primeiro texto que escreveu?
Quando viajava, porque não levava máquina fotográfica, escrevia muito daquilo que vivenciava em pequenos blocos que guardava no bolso das calças e que me ajudavam a reter experiências, permitiam-me gravar, não com imagens, mas com palavras, o que via e sentia.

Tem livros dirigidos a diferentes públicos. Prefere escrever livros para adultos ou para os leitores mais novos? Porquê?
Não penso nisso. Escrevo livros que depois encontram o seu público, os seus leitores. Tenho uma ideia, tento concretizá-la o melhor que sei, da maneira que considero mais eficiente. Por vezes, inclui crianças, outras não.

As recordações que tem da infância passada em Buarcos, Figueira da Foz, influenciaram a escrita de Mar?
Algumas, sim. O mar é uma presença constante na Figueira. Em casa dos meus avós, de manhã, era a primeira coisa que via quando olhava pela janela. Há pouco tempo escrevi uma frase, num livro: «Como é que um mar tão grande cabe numa janela tão pequena?» Eram as minhas manhãs, a olhar para aquele gigante que entrava pela casa, pela janela mais pequena e enchia tudo. Outras coisas foram também importantes, temas omnipresentes, que fazem parte do imaginário da Figueira da Foz. A pesca do bacalhau, por exemplo, é matéria romanesca pura. A meio da escrita do volume Mar, pedi a uma jornalista figueirense, a Andreia, para me enviar uma entrevista que ela tinha feito a um velho capitão da pesca do bacalhau e ponderei pedir-lhe permissão para a publicar na íntegra nesse volume da Enciclopédia da Estória Universal. Só desisti, por não ser o espírito do livro, que é acima de tudo ficcional.

O amor, o passado e a morte são temas nucleares das suas histórias. A escolha destes assuntos deve-se ao facto de fazerem, inevitavelmente, parte integrante da nossa existência?
Claro, são grandes temas. Na verdade, acho que são os temas de toda a literatura. Ao falar da humanidade, inevitavelmente tocamos, abordamos, aprofundamos esses assuntos, que, na prática estão interligados e em certas situações chegam a confundir-se.

Na sua obra, é percetível um enorme fascínio pela religião. A que se deve esse interesse?
Falo de religião, mas não creio falar mais de religião do que de ciência, filosofia ou arte. São maneiras de compreender o universo. Não faz sentido alhearmo-nos de algumas delas. A religião é mais uma ferramenta, ainda que esteja cada vez mais em desuso e desacreditada como forma de entender a vida. No entanto, não perdeu pertinência.

«Quando Deus fecha uma porta, abre-nos um livro». Esta é uma das frases que podemos ler em Jesus Cristo Bebia Cerveja. Considera que a literatura permite-nos viajar, descobrir novos mundos e viver experiências interessantes sem sairmos do mesmo lugar?
A leitura não substitui a viagem física, assim como a viagem não substitui a leitura, apesar de terem alguns pontos comuns. Em ambas podemos experimentar novos mundos e perspetivas, por vezes importantes, outras vezes banais, mas também belos, incómodos, gratificantes, dolorosos, prazerosos. Mas, sobretudo, permitem vários ângulos de visão, novas maneiras de compreender, de aceitar, de execrar.

Para onde vão os guarda-chuvas é um livro que coloca questões, procura explicar o que nos rodeia e estimula a pensar. Como surgiu também o seu interesse pelo mundo da filosofia?
Gosto, como tanta gente, de tentar perceber o mundo que me rodeia. Como uma criança fascinada por um brinquedo, tento abri-lo para ver como funciona, e nesse processo, leio o que posso sobre o que outros têm ou tiveram a dizer sobre isso. A filosofia, assim como a arte e a literatura, são formas de chegar mais longe, de abrir o mundo e tentar perceber as engrenagens que se escondem por debaixo da superfície. Olhar para a vida sem que nos interroguemos, ou a pensemos, é renunciar a uma boa parte da nossa humanidade.

Flores conta a história de um homem que perde a sua memória afetiva e, perante a impossibilidade de a resgatar, procura reinventá-la. Dependemos dos outros para conservar as nossas memórias?
Dependemos dos outros para tudo. A nossa tragédia e felicidade está nos outros. Ninguém existe sem ser percebido, sem ser tocado.

E o escritor, como tem a capacidade de chegar a um maior número de pessoas, tem a responsabilidade de preservar a memória?
O escritor não tem responsabilidade nenhuma, para além da de um cidadão comum. Qualquer coisa imputada a um escritor limita, evidentemente, a sua liberdade e eventualmente a sua criatividade. A preservação da memória é mais um trabalho de um historiador ou de um arqueólogo, mais de um cientista do que de um escritor, cuja matéria-prima é acima de tudo a ficção. Não quer dizer, que, em muitos livros, isso não seja feito de forma admirável. Mas não é um dever.

No livro A Cruzada das Crianças, convida-nos a viajar para o mundo das crianças e lembra-nos que também elas têm sonhos – por vezes, os de tantos adultos – e que há momentos na vida em que é necessário um manifesto, para conseguir alcançar aquilo que desejamos. Deixou algum sonho de criança por realizar? E, hoje, é um sonhador?
Sou otimista. Não gosto nada dos discursos, sejam de direita ou de esquerda, sobre o anúncio do fim dos tempos, da derrocada, do abismo: o estertor do comunismo, o fim do capitalismo, o romance esgotado, a geração vazia e sem propósito (como se tivesse existido uma geração qualquer que não tivesse considerado isso em relação à geração seguinte). Mário de Sá Carneiro, quando tinha dezassete anos, escreveu um conto em que não havia nada mais para descobrir exceto a morte. Basta olhar para o século XX, para perceber tudo o que foi descoberto desde então. Há pouco tempo descobriram uma nova espécie de baleia. Não foi um inseto na Amazônia, foi um mamífero gigante. Há muito para sonhar e para descobrir. Mário de Sá Carneiro, não era um velho desistente quando escreveu esse conto, tinha dezassete anos, mas este é um discurso presente em todas as gerações, no seio do modernismo ou na China de há dois mil e quinhentos anos.

Nem todas as baleias voam é o título do seu último livro, inspirado no projeto «Jazz Ambassadors», e apresenta-se como uma reflexão sobre a vida, a morte e a arte. Considera que a arte, neste caso a música, pode ter um papel importante para transformar o mundo?
Sim. A música, de uma maneira mais imediata, pode fazer mudar muita coisa, basta ver como nos move, como faz encher estádios, como arrasta multidões e põe pessoas a dançar e a gritar em uníssono. Há um poder catártico e avassalador na música, um fenómeno mais difícil ou impossível de conseguir com outras artes, que não deixam de ser igualmente eficientes e marcantes, mas cujo impacto nos fruidores é feito de maneira diferente. Em todo o caso, independentemente do meio de expressão, a cultura é essencial para a sociedade, para a sustentar, mas principalmente para a mudar e melhorar.

Ao longo da sua carreira, recebeu já várias distinções e prémios literários. Enciclopédia da Estória Universal é distinguida com o Grande Prémio de Conto Castelo Branco, em 2009. O livro A Boneca de Kokoschka vence o Prémio da União Europeia de Literatura, em 2012. Recebeu, ainda, o Prémio Autores da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em 2011 e 2014, e o Prémio Nacional de Ilustração, em 2014. A obra Os livros que devoraram o meu pai é distinguida com o Prémio Literário Maria Rosa Colaço e A contradição humana vence o Prémio Autores SPA/RTP. O romance Jesus Cristo Bebia Cerveja, editado em 2012, é distinguido com o Prémio Time Out – Livro do Ano e Para onde vão os guarda-chuvas, publicado em 2013, com o Prémio Autores SPA na categoria Melhor Livro de Ficção. Muito recentemente, o romance Flores vence o Prémio Literário Fernando Namora, em 2016. Como encara todo este reconhecimento?
Com alegria. É sempre gratificante saber que alguém acha que o nosso trabalho é meritório, independentemente da subjetividade inerente. Os prémios, para quem vem de fora do meio, são especialmente importantes. Apontam para os nossos livros e fazem com que não sejam tão facilmente ignorados, quer pelos media, quer pelos leitores.

Muitas vezes, notamos que há uma certa dificuldade em escolher um livro para oferecer às crianças. O Plano Nacional de Leitura, em parceria com a Rede de Bibliotecas Escolares e as Bibliotecas Municipais, desempenha um papel fundamental na promoção da leitura. Acha que o objetivo está a ser cumprido?
Sim. Acho que é muito importante. Tenho conhecido pessoas incríveis, que têm atos superrogatórios e promovem a leitura com uma dedicação admirável. Quando apoiados por um plano ou instituição que os ajude, podemos efetivamente chegar mais longe em muito menos tempo.

Conte-nos uma situação que tenha vivido numa visita a uma Escola ou a uma Biblioteca e tenha sido particularmente especial.
Numa escola em Medellín, na Colômbia, um rapaz rapou o cabelo, pôs uma barba postiça e uma argola na orelha, para ficar parecido comigo. Havia centenas de crianças à minha espera, mas este sósia, que dizia ser o meu maior fã, deixou-me verdadeiramente surpreendido.

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Escreve todos os dias? Por prazer ou por necessidade?
Escrevo quando tenho algo para escrever. Espero que seja todos os dias, mas por vezes não acontece. De qualquer modo, prazer e necessidade confundem-se.

Tem algum ritual de escrita?
Escrevo em qualquer lugar e a qualquer hora. Mas prefiro escrever à noite, quando tenho mais silêncio e menos interrupções. Ninguém me liga, me envia e-mails. A noite é, também, pelo meu ritmo biológico, o momento em que me sinto mais confortável. Escrevo sempre no computador ou no iPad.

Lembra-se do momento em que viu pela primeira vez um livro seu nas montras das livrarias? Descreva-nos como foi a sensação.
Não me lembro, o que deve querer dizer que não dei muita importância.

Podemos esperar a publicação de novos livros para breve?
Claro. Estou sempre a escrever.

Mais informações sobre o autor aqui.

 

 

Feira do Livro de Lisboa está quase a abrir… e com novidades!

por Sofia Pereira

A 86ª Feira do Livro de Lisboa decorre entre 26 de maio e 13 de junho, no Parque Eduardo VII, uma organização da APEL – Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, que tem como objetivos promover o livro, e fomentar os hábitos de leitura e o incremento do nível de literacia.

Durante mais de duas semanas, os leitores têm oportunidade de participar nesta festa do livro, o maior evento literário do país, que tem na sua programação um vasto leque de atividades: apresentação de livros, sessões de autógrafos, concertos, doação de livros, cinema,  showcookings, debates, concertos, workshops, transmissão de programas de rádio e mostras gastronómicas.

Uma das grandes novidades da edição deste ano é a App, uma aplicação disponível em Android ou iOS, com o mapa dos pavilhões, a programação das iniciativas e os livros do dia.

Mais informação sobre a Feira do Livro de Lisboa 2016 aqui.